
Por Carlos E V Grelle, professor associado da UFRJ e coordenador da rede BioMA/PPBio/CNPq/MCTi
No decorrer dos últimos séculos, a humanidade conquistou avanços notáveis — da erradicação de doenças como a varíola ao aumento da expectativa de vida, da revolução agrícola à ecologia de paisagens, da física quântica aos smartfones — que elevaram de forma inédita o nosso bem-estar coletivo. Esses feitos tornaram-se possíveis quando passamos a adotar um modo sistemático de pensar e um método de investigação muito mais eficiente do que o empirismo limitado à experiência e opinião de cada indivíduo. É inegável a importância desse patrimônio intelectual, e pensadores como John Locke e David Hume —expoentes do empirismo — merecem ser sempre lembrados por suas contribuições fundamentais. Porém, o desenvolvimento do método científico conduziu ao caminho mais confiável para compreender a realidade, reconstruir o passado e elaborar previsões acerca do futuro. A ciência, afinal, é uma lente privilegiada para interpretar o mundo, e vale recordar as palavras de Bertrand Russell: “a ciência é muito mais do que seus métodos”. O prestígio social dessa forma de conhecimento fica evidente em expressões como “é cientificamente comprovado”, frequentemente invocadas para conferir autoridade a um argumento. Ainda que a maioria das pessoas não conheçam os pormenores da construção do saber científico, seu valor como base segura para decisões individuais e coletivas é amplamente reconhecido.
Se o conhecimento científico é tão essencial, por que às vezes é preterido? Não faltam exemplos: gestores que extinguem institutos e centros estaduais de pesquisa ou vetam a inclusão de mudanças climáticas nos currículos escolares. Há, porém, formas mais sutis de desvalorizar a Ciência. Em conferências a princípio técnico-científicas já assisti o expositor, ao discutir questões como conteúdo nacional na construção de plataformas petrolíferas, apresente dados sem indicar a fonte; impedindo quem queira aprofundar-se ou conferir a informação nos artigos ou teses. Essa omissão surpreende, sobretudo quando parte de alguém ligado ao meio acadêmico, e sugere a intenção de transformar opinião pessoal em argumento de peso, com potencial de repercussão em políticas públicas. Outro indício dessa percepção distorcida surge nos debates sobre orçamento público, quando a ciência é tratada como despesa e não como investimento estratégico.
O exemplo mais recente e eloquente de desconsideração por anos de pesquisa científica materializou-se na aprovação, pelo Congresso Nacional, do PL 2159/2021— originalmente batizado de PL do Licenciamento Ambiental e já apelidado de “PL da Devastação”. Inúmeras evidências teóricas e empíricas mostram que a ausência de ordenamento territorial compromete o funcionamento dos ecossistemas e, por consequência, a saúde humana, premissa cristalizada no conceito internacional de One Health. Décadas de estudos, financiados com recursos públicos, indicam a cobertura mínima de vegetação nativa necessária para sustentar as dinâmicas populacionais de fauna e flora, os ciclos biogeoquímicos e, portanto, os serviços ecossistêmicos. Num país que alavanca sua economia na exportação de commodities, vale recordar a correlação direta — e positiva — entre esses serviços e o PIB. Mesmo assim, o PL 2159/2021 desconsidera esse conhecimento ao instituir o autolicenciamento (LAC) para determinados empreendimentos e criar a Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAE) sem critérios técnicos claros. Dessa forma, projetos escapam ao escrutínio dos órgãos licenciadores, únicos capazes de avaliar impactos cumulativos em escala de paisagem. Se cada empreendedor olhar apenas para o próprio quintal, quem impedirá por exemplo que a captação excessiva de água a montante prejudique comunidades a jusante? Até agora essa análise sistêmica cabia às autoridades ambientais; daqui em diante, reina a incerteza.
Diversos alertas foram emitidos contra o PL, entre eles duas notas técnicas — uma do Centro de Conhecimento em Biodiversidade e outra do Observatório do Clima — subscritas por dezenas de pesquisadores e que evidenciam suas fragilidades e inconsistências em uma análise detalhada. Somando-se a essas controvérsias, o Congresso Nacional inseriu um “jabuti” que enfraquece a Lei da Mata Atlântica, revelando claro oportunismo legislativo com potencial dano para a sociedade brasileira. Resta agora aguardar que a Presidência da República promova o veto, parcial ou integral, ao PL 2159/2021. E é imperativo refletir por que, no Brasil, o conhecimento científico continua sendo relegado a segundo plano.