ARTIGO

Pressa para destruir: Congresso ignora a Constituição e os territórios tradicionais

Entre os retrocessos mais graves trazidos pelo PL da Devastação, está o ataque direto aos direitos de povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais

Ataque direto aos direitos de povos indígenas é um dos retrocessos do PL da Devastação  -  (crédito: Pablo PORCIUNCULA/AFP)
Ataque direto aos direitos de povos indígenas é um dos retrocessos do PL da Devastação - (crédito: Pablo PORCIUNCULA/AFP)

Samuel Caetano membro da Articulação Rosalino Gomes de povos e comunidades tradicionais do Norte de Minas; Daniella Strasser, Márcia Ever e Patrícia Silva — assessoras de Políticas Públicas do ISPN

Ao reconhecer a função socioambiental da propriedade, os saberes tradicionais e a diversidade étnico-cultural como elementos estruturantes da nação, a Constituição de 1988 sinalizou uma possível ruptura com o modelo de exploração predatória das pessoas e dos recursos naturais. O legislador constituinte também incluiu a defesa do meio ambiente entre os princípios da ordem econômica, o que significa dizer que o crescimento econômico deverá estar alinhado à proteção ambiental. 

Desde então, a política socioambiental brasileira avançou em ciclos de pequenos avanços e grandes retrocessos, a exemplo da tese do marco temporal, afastada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2025, testemunhamos o que pode se tornar o maior retrocesso ambiental na história do país: o PL da Devastação (PL 2.159/2021). Fruto de uma articulação bem-sucedida entre os setores que mais lucram com o extrativismo predatório, o projeto reflete a força de interesses econômicos que hoje predominam no Congresso Nacional.  

Entre os retrocessos mais graves trazidos pela proposta, está o ataque direto aos direitos de povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. O texto permite a concessão de licenças com base na autodeclaração dos próprios empreendedores, incluindo atividades de médio impacto, sem a exigência de estudos técnicos prévios e ignorando os impactos climáticos e sociais das atividades. Isso, na prática, ignora os riscos enfrentados pelas populações que vivem e dependem diretamente dos territórios afetados.

O texto também dispensa o licenciamento para uma diversidade de atividades agropecuárias; e enfraquece a participação de órgãos como Funai, Incra, ICMBio e Iphan, tornando inócuos os dispositivos constitucionais que asseguram a proteção de terras indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais.  

A proposta impactaria 32% das terras indígenas e 87% dos territórios quilombolas que ainda aguardam a titulação, de acordo com o Instituto Socioambiental. A situação é ainda mais crítica para comunidades tradicionais que sequer contam com um marco jurídico específico para o reconhecimento de seus territórios. A iniciativa Tô no Mapa já identificou 396 territórios de povos e comunidades tradicionais, com área de 1,3 milhões de hectares, onde vivem mais de 40 mil famílias. Agora, é sabido que há muito mais comunidades tradicionais que seguem invisibilizadas nas políticas públicas e nos mapas oficiais. 

Ao ignorar a Convenção 169 da OIT, entre outras declarações das Nações Unidas sobre direitos indígenas, afrodescentes e camponeses, o projeto viola o direito à consulta livre, prévia e informada, enfraquece a legislação ambiental e favorece interesses puramente econômicos. Esses fatores inevitavelmente tenderão a intensificar os conflitos nos territórios, em um cenário no qual o Brasil já figura como um dos países mais violentos para defensores ambientais do planeta.

Cabe ainda a preocupação com a desvinculação do licenciamento ambiental da outorga de uso da água e autorização para uso do solo, enfraquecendo ainda mais a proteção ambiental de todos os biomas brasileiros. Destaca-se o Cerrado, que, no ano de 2024, concentrou 50% de todo o desmatamento do Brasil e é um bioma essencial para a segurança hídrica e energética do país. Estudo da Ambiental Media mostra que o Cerrado perdeu 27% da superfície de água nos últimos 20 anos, e as causas estão relacionadas ao desmatamento para a produção de commodities e às mudanças climáticas.

A proposta prejudicará os próprios empreendedores ao criar um cenário de enorme insegurança jurídica, diminuindo a credibilidade ambiental do país e podendo afastar possíveis investidores. Excluir análises técnicas e de consultas obrigatórias tornará os empreendimentos mais vulneráveis a ações judiciais, embargos e disputas prolongadas, atrasando projetos e ampliando os riscos econômicos para quem busca investir com responsabilidade.

Por fim, em 2025, o Brasil sediará a COP30, tendo a oportunidade de liderar uma agenda global baseada na sociobiodiversidade e na valorização dos povos que garantem a integridade ambiental dos territórios. Assim, torna-se evidente que o governo precisa vetar integralmente esse projeto e reafirmar o compromisso com o cumprimento de metas climáticas no âmbito do Acordo de Paris, respeitando a Constituição de 1988, que protege os bens comuns e pretende um presente e futuro dignos para todas as pessoas. 

Nesse cenário, os povos e comunidades tradicionais reafirmam: "Somos mais antigos que o progresso que devasta e mais teimosos que o lucro que nos cerca. Quem tenta nos apagar esquece que carregamos o tempo nos ossos e a rebeldia nas veias".

 

Por Opinião
postado em 07/08/2025 06:00
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