
Cristovam Buarque — professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
A linguagem politicamente correta tem escondido problemas graves sob um tapete linguístico que, em nome de preservar a dignidade das vítimas, suaviza a dramaticidade dos fatos.
Há um movimento que propõe trocar a palavra escravo por escravizado. A mudança tem mérito ao lembrar que ninguém nasce escravo, mas é escravizado por traficantes, fazendeiros, donos de casa ou empresários. No entanto, ofusca o fato de que, salvo raras exceções de alforria ou fuga, a pessoa escravizada tornava-se escrava por toda a vida. Desde a captura na África, o escravizado passava a ser escravo. O sistema fazia com que "estar escravizado" virasse uma condição permanente de "ser escravo". A mulher negra grávida carregava um bebê ainda não escravizado, mas já escravo — condenado desde o ventre, como se o útero fosse um navio negreiro humano. A boa intenção pode ocultar a perversidade de um sistema que impunha uma condição vitalícia.
O uso do termo vítima de insegurança alimentar, em vez de faminto, transforma um drama humano em expressão técnica. Para respeitar a dignidade da pessoa, evita-se a palavra direta, substituindo-a por estado de insegurança, como se a desnutrição crônica fosse semelhante a riscos no trânsito ou à violência urbana. Embora tecnicamente correta, a expressão não transmite o sofrimento real de quem sente fome.
De forma semelhante, trocar favela por comunidade pode atenuar o estigma de quem mora nela, mas também mascara a ausência de infraestrutura, os riscos sanitários e a carência de serviços urbanos. Oculta-se ainda a desigualdade em relação aos bairros ricos e condomínios, cujos moradores também se consideram parte de suas respectivas comunidades.
Para evitar estigmas, o termo prostituição infanti foi substituído por exploração sexual de menores. Essa nova expressão evita a marca infame de violentar crianças ao submetê-las à prostituição, mas, ao mesmo tempo, reduz a gravidade da tragédia e a vergonha social. Coloca o estupro de vulneráveis como mais um tipo de exploração, como se a ação de um criminoso pervertido que se apropria do corpo de uma criança e a obriga a sobreviver prostituindo-se fosse comparável à ação de um capitalista que explora um operário em sua fábrica. Ao nivelar fatos tão distintos com o mesmo termo, atenua-se a violência da tragédia.
Alguns, por sentirem que o termo analfabeto carrega discriminação ofensiva, preferem a expressão iletrado. No entanto, essa solidariedade linguística acaba por camuflar a tortura diária de quem não sabe ler vivendo em uma sociedade letrada. Iletramento transforma a tragédia do analfabetismo em uma condição técnica — de alguém em vias de letramento. lletrado é quem aprendeu a ler, mas não lê com frequência, sem a dramaticidade de uma pessoa que, por falta de cuidados do Estado quando criança, ficou adulto incapaz de ler o que está escrito na carta de um filho distante ou nas páginas do anúncio de emprego ou o nome do remédio que deve dar a um familiar. O nome disso é analfabetismo. Iletrado é quem aprendeu a ler, mas não lê com frequência.
A prática de camuflar a tragédia de uma situação, tratando-a como etapa de um processo, se repete no uso da expressão em vias de desenvolvimento, no lugar de subdesenvolvido. Embora a antiga palavra transmitisse uma ideia de condenação ao atraso, a nova expressão oculta os círculos viciosos que mantêm as populações desses países na pobreza. Em vias de desenvolvimento sugere movimento para o progresso, quando, na prática, muitas dessas nações só mudarão sua realidade com ações concretas: revoluções econômicas, culturais e educacionais.
Se na África do Sul o regime do apartheid tivesse sido chamado de desigualdade racial, a vergonhosa tragédia da separação de negros e brancos teria sido diluída. É isso que se faz no Brasil ao chamar de desigualdade social à apartação que caracteriza a sociedade brasileira separando os pobres do Brasil moderno, o analfabeto de quem tem acesso à educação de qualidade, o morador de rua e de quem vive em condomínio. O abismo social transforma desigualdade em apartação, ao jogar essa expressão sob o tapete linguístico, camufla-se a realidade e alivia-se a culpa dos que causam as tragédias da escravidão, da fome, da prostituição infantil, do analfabetismo e da exclusão.