
Em 2014, o DJ Alok viveu um momento de crise existencial, crise de inspiração artística e de depressão. Estava em busca de respostas para a sua vida quando um amigo lhe mostrou um vídeo do povo Yawanawa, da Amazônia. Sentiu-se profundamente tocado pela beleza ancestral. Para conhecê-los teria de pegar três voos, rodar nove horas na estrada e navegar mais nove numa voadeira para chegar até lá. Ao chegar, com intuição veloz, Alok percebeu que, enquanto fazia música para entrar no top 10, os indígenas faziam música para curar.
Passou a se conectar mais com a natureza e, em 2021, ao se perguntar sobre o futuro, percebeu que o futuro era ancestral. E, por isso, gravou um álbum inspirado nas raízes indígenas, com os povos originários. Na sequência, o Instituto Alok lança, nas plataformas digitais, hoje, Dia Internacional dos Povos Indígenas, a coleção Som Nativo, com 7 álbuns com a música de 7 etnias indígenas. São elas: Kariri Xocó, Huni Kui, Kaigang & Guarani Nhandewa, Yawanawa, Guarani Mbyá, Guarani-Kaiowá. A etnia Xakriabá participou de Futuro ancestral, o primeiro álbum a série, lançado no ano passado.
Além de difundir a riqueza musical dos povos originários, a coleção Som Nativo pretende contribuir para a Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032), estabelecida pela Unesco. "Eles não escrevem, a forma de passar a cultura é pela música", observa Alok, em entrevista ao Correio. "A gente não consegue amar e proteger algo que não conhece muito bem. A melhor forma de proteger a floresta é ouvir o que ela tem a dizer. Mas, para isso, é preciso se conectar. Então, o que era para ser uma jornada musical, passou a ser uma jornada de transformação de vida".
A gente sempre se pergunta qual mundo deixaremos para os nossos filhos. Mas, para Alok, é preciso também indagar que filhos deixaremos para esse mundo. Por isso, é necessário sensibilizar as novas gerações para a relevância dos indígenas na sobrevivência do planeta e, neste sentido, a música é um meio de importância crucial: "Não adianta nada deixar um mundo assentado na sustentabilidade se essa nova geração não der valor a isso. Um dos pilares mais importantes desse trabalho é trazer conscientização. Sempre disse que esse álbum não estava jogando o jogo mercadológico. Neste jogo, você faz uma música que vai durar três meses ou seis meses. Quando se trata dos povos originários, temos músicas de mais de 500 anos. São atemporais. Mais que isso, tem de ser um trabalho que traga valorização dos povos originários. A gente precisa saber qual é a história que foi contada para a gente e qual é a verdadeira".
O cântico Pedju kunumigwe, do povo Guarani Nhandewa, recebeu uma indicação ao Grammy latino de 2024. Everton Lalau, integrante da etnia, espera que o lançamento da coleção Som Nativo consiga levar as vozes, as reivindicações e o grito para ecoar no mundo. "O nosso povo é muito coletivo. Esse trabalho é muito importante para nós. O DJ Alok, defensor das causas indígenas, abriu as portas para a gente levar nossas vozes para o mundo inteiro, por meio de nossos cânticos".
Quando Alok entrou em contato com Mapu Huni Kui, ele pensou que era para participar do álbum do DJ. Mas, ao chegar no estúdio, entendeu que havia ganhado o presente de gravar o próprio disco. "Eu sou uma das primeiras pessoas do meu povo a ser o privilégio de colocar a música em um arquivo que vai ficar para sempre. Então, isso pra mim é um dos melhores presentes que eu posso dar para as futuras gerações".
O repertório do disco é constituído por músicas em feitio de oração. São rezas de alinhamento, de cura, de conexão e de memória: "É para lembrar das nossas vidas passadas e para que a gente possa revigorar a nossa energia e se fortalecer. Trazer o perfume da natureza, o oxigênio das plantas, das flores, essa conexão com o grande espírito, com o sol, a lua e as estrelas. Com todos os seres de luz e de paz. É para que as pessoas que ouvem possam ser mais equilibrados, no plano espiritual, emocional e material. É para que mude a energia da casa, do espaço e do celular".
Para ele, a coleção Som Nativo permitirá que os povos originários atravessem o Oceano Atlântico e rompam as barreiras dos continentes: "Eu viajo como um índio mensageiro, para falar, para chegar à casa das pessoas e falar que a floresta está pedindo socorro."
Gravar o álbum foi um momento muito especial na vida de Rasu, da etnia Yawanawa. Depois de Alok passar pela aldeia, Rasu mandou uma mensagem para ele de que eles estavam prontos para compartilhar a música da etnia com o mundo. Nunca haviam cantado em estúdio, com microfone e equipamentos de alta precisão. "Eu senti que ali eu tava vivendo uma transformação muito grande, gravando de verdade a nossa música. Estava escrevendo uma nova história, onde nossos cantos iam viajar para longe, iam tocar outros corações. Como o Kairau já dizia, o mundo ia começar a nos ouvir."
As canções do álbum vem do jeito de viver e de curar do povo Yawanawá, explica Rasu. São conhecidos como o povo da queixada, que cura com o sopro e com o canto. O saiti, o canto Yawanawá, representa tudo para eles: "É através do canto que expressamos nossos sentimentos, nossos pensamentos, nossa espiritualidade. O canto liberta. Ele é caminho de cura, de sabedoria, de alegria e de memória. Existem cantos para todos os momentos: cantos das crianças, cantos dos nossos anciãos, cantos que são brincadeira, e também aqueles que trazem força, ensinamento, conexão com o sagrado."
O canto ocupa um lugar crucial na vida do povo Yawanawá, destaca Rasu: "O saiti é a nossa identidade. Se hoje ainda temos nossa cultura viva, é porque temos o canto. Ele é o fio que liga passado, presente e futuro. Tudo que somos e tudo que vivemos está dentro dos cantos. E é isso que estamos trazendo neste trabalho: nossa história viva, nossa essência, nossa forma de existir no mundo."
Os sete álbuns de som nativo
1) Hiri Shubu Keneya Bari Bay (etnia Huni Kuin)
Do músico e líder espiritual Mapu Huni Kuin. Reúne 12 faixas com rezas sagradas e composições autorais que incluem tambores e violão, buscando conectar espiritualidade e natureza.
2) Mariri Yawanawa Saiote Kayuahu (etnia Yawanawa)
Do grupo Yawanawa Saiti Kaya. Entrelaça narrativas de cura, celebração da natureza e memórias ancestrais, com a utilização de instrumentos rituais, como flautas e tambores, marcado por vozes potentes.
3) Cantos dos Encantos Kariri Xocó (etnia Kariri Xocó)
Inspirado em modas de viola, celebra as tradições e a espiritualidade do povo indígena Kariri Xocó, por meio de músicas que evocam rituais sagrados e processos de cura que remetem ao toré dos povos indígenas da Caatinga do Nordeste brasileiro.
4) Nhe’e Porã (etnia Guarani Mbya)
Propicia uma imersão no modo de ser Guarani Mbya, por meio de cantos sagrados que entrelaçam tradição, espiritualidade e resistência. É acompanhado por instrumentos tradicionais e interpretado por jovens indígenas.
5) Retomada (Guarani Kaiowá)
Álbum do grupo B rô MC’s, precursor do rap indígena cantado em língua nativa, é um manifesto musical que expressa a luta dos Guarani Kaiowá pela preservação de seu tekoha, terra sagrada onde vivem segundo as suas tradições
6) Kaingang e Guarani Nhandewa (etnias Kaingang e Guarani Nhandewa)
É constituído por canções dos dois grupos indígenas e destaca as tradições musicais e a força do movimento indígena, com a participação de artistas e guerreiros que integraram o grupo Levante da Terra, organizado em Brasília em 2020
7) Kayraw Vimiuu (Yawanawa)
De Peká Rasu Yawanawá. Apresenta cinco canções que celebram as tradições do povo Yawanawá, do Acre, inspiradas nos ensinamentos xamânicos e nas cerimônias espirituais, em busca de cura e conexão espiritual.
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Severino Francisco
Subeditor do caderno de cultura e cronistaJornalista desde 1979, atuou como repórter, editor, articulista, crítico cultural e cronista no Jornal de Brasília e no Correio Brasiliense. Lecionou jornalismo no UniCEUB. É autor, entre outros, de Da poeira a eletricidade , história da música de