
Para algumas pessoas com alergia alimentar, amendoim ou camarão são apenas tira-gostos. Em outras, porém, a ingestão desses itens desencadeia uma crise de anafilaxia, capaz de matar em poucos minutos. Agora, um experimento realizado nos Estados Unidos explica por que indivíduos com os mesmos anticorpos têm reações tão diferentes a determinados alérgenos. Além disso, o estudo, publicado na revista Science, abre caminho para um novo tratamento, baseado em uma molécula já aprovada pelas autoridades sanitárias.
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Segundo a imunologista Stephanie Eisenbarth, coautora do estudo e pesquisadora da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, ter anticorpos associados à alergia alimentar faz com que muitos pacientes vivam sob a tensão constante de uma crise anafilática. A cientista explica que, até agora, era um mistério entender por que alguns alérgicos respondem com violência a determinados alimentos, enquanto outros podem permanecer assintomáticos por toda a vida.
Em testes com camundongos, os cientistas de Northwestern e da Universidade de Yale identificaram que a diferença entre reagir ou não a um alimento está na capacidade da mucosa intestinal de bloquear a passagem de alérgenos — como proteínas de amendoim ou ovo — para a corrente sanguínea. "Apenas quando essas proteínas atravessam o intestino e entram em contato com células do sistema imunológico, como os mastócitos carregados com IgE, é que a anafilaxia é desencadeada", explica Stephanie Eisenbarth.
Antena
IgE é um anticorpo, substância produzida pelo corpo para lutar contra agentes infecciosos e, que também faz a mediação de reações alérgicas. "Quando o organismo se sensibiliza diante de um alérgeno, seja alimento ou medicamento, esse anticorpo, chamado imunoglobulina E, se liga a algumas células, incluindo os mastócitos. Uma vez que ele está lá, fica esperando a próxima vez que aquela substância vai entrar no corpo, é como se fosse uma antena parabólica captando essa informação", compara Alex Isidoro Ferreira Prado, médico imunologista e alergista e professor do Grupo Medcof. "Quando o alérgeno entra em contato com o IgE, o mastócito é ativado, liberando uma série de substâncias que estão presentes em uma reação alérgica", diz.
No experimento norte-americano, mesmo com níveis altos de anticorpos IgE contra amendoim, uma população de camundongos não desenvolvia anafilaxia quando exposta ao alimento pela via oral. Em vez disso, só tinha a reação quando o alérgeno era injetado diretamente no corpo, pulando o intestino. Isso chamou a atenção dos cientistas, que compararam esse grupo a roedores de outra linhagem, que reagem de forma violenta à ingestão do mesmo alérgeno.
Ao investigar o que havia de diferente entre os dois grupos, os pesquisadores fizeram uma triagem genética e identificaram o gene Dpep1 como o fator de proteção. Ele codifica a enzima dipeptidase 1 (DPEP1), capaz de quebrar lipídios chamados leucotrienos e reduzir sua atividade inflamatória. Quando os cientistas bloquearam essa enzima com um medicamento, os camundongos antes protegidos passaram a desenvolver anafilaxia — um indicativo de que o DPEP1 funciona como uma espécie de freio natural para a resposta alérgica grave.
Barreira
O imunologista Alex Isidoro Ferreira Prado esclarece que o intestino é uma das principais barreiras protetoras do corpo. "Ele funciona como filtro físico. Tem barreiras, tem células epiteliais que vão revestir essa superfície das nossas mucosas. Mas também tem células de defesas e anticorpos", diz. "Tudo que a gente ingere — alimento, medicamento, contaminante, tem que passar por esse sistema de vigilância. O estudo nos ajuda a entender que o intestino não é só uma barreira passiva: ele é um órgão imunológico bastante ativo, que pode modular o risco das alergias alimentares, dependendo de como é essa entrada no nosso corpo."
Stephanie Eisenbarth afirma que a descoberta muda completamente a visão dos pesquisadores sobre a anafilaxia. "Sabemos que os anticorpos IgE são necessários, mas não suficientes para causar a reação. Agora temos uma explicação fisiológica para esse fenômeno: a integridade da barreira intestinal mediada pela atividade dos leucotrienos e pela ação da DPEP1", resume.
O professor de Alergia e Imunologia do Mecof lembra que ser IgE positivo — condição apontada por exames laboratoriais — não é suficiente para que o paciente tenha sintomas clínicos. "Só o exame de IgE não dá o diagnóstico; a presença do anticorpo é necessária, mas não é suficiente por si só", diz. "O estudo mostra que a eficiência da barreira intestinal é diferente: nos pacientes que têm os sintomas e a anafixilia, o alérgeno não é degradado. Também temos outros fatores reguladores dessa resposta. Temos células que são os 'guardinhas imunológicos', as células T reguladoras, que controlam respostas exageradas", diz Ferreira Prado.
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O que pode explicar o aumento nos casos de alergia alimentar em crianças?
Nas últimas décadas, observamos um aumento significativo nos casos de alergia alimentar em crianças. Diversos fatores podem estar associados a esse crescimento, incluindo mudanças nos hábitos alimentares, maior urbanização, cesarianas, uso precoce de antibióticos e até mesmo o excesso de higiene nos primeiros anos de vida, algo conhecido como "hipótese da higiene". Além disso, há mais conscientização e diagnóstico precoce, o que também contribui para o aumento das notificações.
Quais são os alimentos mais comuns que causam alergia alimentar em bebês e crianças pequenas?
Em crianças, são leite de vaca, ovo, trigo, soja, amendoim, castanhas, peixes e frutos-do-mar. Em bebês, o leite de vaca e o ovo são os principais vilões. Lembrando do conceito da janela imunológica: quando feita a exposição na fase correta da introdução alimentar, diminuímos as alergias e criamos tolerância a esses alimentos.
Existem tratamentos que ajudam na dessensibilização?
Sim, em alguns casos é possível realizar um tratamento chamado imunoterapia oral, que consiste na administração gradual do alimento ao qual a criança é alérgica, em doses progressivamente maiores, sob supervisão médica. O objetivo é induzir a tolerância e reduzir ou eliminar as reações alérgicas. Esse tratamento ainda é feito em centros especializados e nem todos os casos são elegíveis, mas os resultados têm sido bastante promissores.
A alergia alimentar pode passar com o tempo?
Sim, muitas alergias alimentares infantis tendem a desaparecer com o tempo. É comum que alergias a leite de vaca, ovo, soja e trigo se resolvam até os 5 a 7 anos. Por outro lado, alergias a amendoim, castanhas e frutos-do-mar têm maior chance de persistirem por toda a vida.
Testes em humanos
Além de responder uma importante questão sobre anticorpos e alergia alimentar, o estudo das universidades de Northwestern e Yale, nos Estados Unidos, também pode abrir caminho para novos tratamentos terapêuticos. Os pesquisadores testaram em camundongos o zileuton um medicamento já aprovado pela Food and Drugs Administration, agência reguladora norte-americana, e conseguiram evitar a anafilaxia nos animais alérgicos. O remédio, que bloqueia a produção de um tipo de lipídio, é usado, atualmente, para controle da asma.
"Esses dados sugerem que, no futuro, será possível pensar em tratamentos preventivos para alergia alimentar que não atuem diretamente nos anticorpos, mas sim no ambiente intestinal", disse, em nota, o imunologista Adam Williams, coautor do estudo. Ele lembra, no entanto, que os testes foram feitos em animais, e que ainda é cedo para aplicar essas terapias em humanos.
Outra substância testada no estudo, a cilastatina — que bloqueia a ação de uma enzima chamada DPEP1 — teve o efeito contrário. O uso tornou camundongos resistentes suscetíveis à reação alérgica. "Isso confirmou o papel central da enzima como moduladora da resposta imune via intestino", disse Willians. "A pesquisa levanta a possibilidade de uma nova abordagem para prevenir anafilaxia: modular o intestino, em vez de tentar 'apagar' a alergia."
Disponibilidade
Segundo o alergista e imunologista Alex Isidoro Ferreira Prado, professor do Grupo Medcof, no mercado existem alguns medicamentos preventivos, como o próprio zileuton — disponível, apenas, nos Estados Unidos. No Brasil, há o montelucaste, amplamente usado para asma e rinite, mas que não foi eficaz no estudo norte-americano para alergia alimentar, lembra o médico. "É muito importante ter estudos mostrando que há medicações eficientes, para que possamos aplicar na prática clínica e, quem sabe, aumentar a disponibilidade desses medicamentos para países como o Brasil", acredita.
Apesar do entusiasmo, Ferreira Prado recomenda cautela. "A resposta do modelo animal é diferente da resposta humana", lembra. Além disso, a anafilaxia envolve outras substâncias e mediadores inflamatórios, que podem, inclusive, não depender dos anticorpos IgE. "Também estamos falando de uma medicação que pode ter eventos adversos. Então, a gente não tem nenhuma evidência clínica ainda com alergia alimentar em humanos. Por mais que sejam animadores os resultados, a gente tem que ter um pouco de cuidado científico nessa avaliação."
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