Violência contra a mulher

Ataque no elevador: denúncia é o primeiro passo para combater a violência doméstica

Agressão reforça a importância da denúncia. Caso veio à tona após a mãe da vítima relatar o espancamento cometido pelo companheiro da filha. Apesar da gravidade do fato, a mulher não queria prestar queixa

Homem espanca mulher com dezenas de socos em elevador no Guará -  (crédito: Material cedido ao Correio)
Homem espanca mulher com dezenas de socos em elevador no Guará - (crédito: Material cedido ao Correio)

O elevador de um prédio no Guará tornou-se cenário de um ato de extrema violência, na capital federal. Em cerca de quatro minutos, o empresário Cleber Lúcio Borges, de 55 anos, descarregou uma sequência brutal de socos contra a própria companheira, deixando-a caída no chão, sem chance de fuga, sem defesa, sem voz. 

A agressão filmada pelas câmeras do elevador começou antes mesmo de o casal, que estava junto havia 17 anos, chegar em casa. Eles retornavam de uma festa de casamento quando tiveram uma discussão no carro. De acordo com depoimento da mãe, o suspeito ordenou que a companheira saísse do veículo, alegando que iria "dar uma lição" nela. 

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Temendo pelo pior, a vítima aproveitou um momento em que ele saiu do carro e dirigiu até o condomínio para buscar os pertences dela e o cachorro, com a intenção de se abrigar na casa de uma amiga. Enquanto falava ao telefone com essa amiga, foi alertada: "Não fique na sua casa, ele vai bater em você. Vem para cá". Ao entrar no elevador, no entanto, deu de frente com o agressor, tomado pela fúria. A sequência que se seguiu foi trágica: socos, empurrões, cotoveladas, violência ininterrupta. Veja:

 

Investigação

O caso chegou às autoridades não pela voz da vítima, mas pela coragem de outra mulher — a mãe dela. No domingo (4/8), durante uma visita a um hospital particular, onde a filha estava internada por conta dos ferimentos, o médico que a atendia revelou à mãe a gravidade da situação: as lesões eram compatíveis com agressão física.

Em coletiva de imprensa realizada ontem, o delegado Marcos Loures, titular da 4ª Delegacia de Polícia (Guará 2), disse que essa atitude foi decisiva. "A mãe aguardou até o dia seguinte, confirmou tudo com a filha e procurou a delegacia. Foi uma postura louvável, corajosa, que a gente espera de qualquer parente que queira realmente tirar sua filha de um ciclo de violência", ressaltou.

Na segunda-feira, a equipe obteve as imagens do circuito interno de segurança do condomínio. Com base nelas, e na informação de que o suspeito possuía armas de fogo, a 4ª DP representou à Justiça pela prisão preventiva e pela busca e apreensão. O Ministério Público deu parecer favorável, e as medidas foram concedidas.

Apenas três dias após o registro, na quarta-feira, os agentes localizaram o suspeito em uma das lojas dele e cumpriram o mandado de prisão preventiva. Na sequência, seguiram até a casa do agressor, onde encontraram duas armas de fogo — uma pistola Beretta calibre .22 e uma arma antiga, de calibre não identificado — além de um verdadeiro arsenal: 518 munições de calibres diversos, todas armazenadas irregularmente. Cleber permanece preso.

O inquérito revelou que o ciclo de violência teve seu ápice no episódio do elevador, mas vinha se construindo havia muito tempo. Segundo a mãe, as agressões — físicas e psicológicas — eram recorrentes, embora nunca tivessem sido registradas oficialmente. Apesar da gravidade do caso, a vítima se recusou a formalizar a denúncia ou a solicitar medidas protetivas. Loures explica que essa resistência não é incomum "Cerca de 67% das vítimas de feminicídio nunca registraram ocorrência. Esse caso tinha potencial de evoluir para algo ainda mais grave", alertou Loures.

 08/08/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Caso da mulher agredida brutalmente por um homem de 55 anos, dentro do elevador no Guará 2. Delegado da 4 DP Marcos Paulo Loures.
08/08/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Caso da mulher agredida brutalmente por um homem de 55 anos, dentro do elevador no Guará 2. Delegado da 4 DP Marcos Paulo Loures. (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

 

Violência gratuita

Apesar de preocupante, esse cenário não é novo. Em 2024, o Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT) ofereceu à Justiça 7.273 denúncias relacionadas a casos de violência doméstica, um salto de 21% em relação às 5.995 ocorrências de 2023. Grande parte dos inquéritos policiais envolveu Ameaça (8.417), Injúria (7.246) e a Lesão Corporal (7.223). 

A advogada criminalista Maria Carolina Barreto, especialista na defesa de vítimas de violência contra a mulher, ressalta que o enfrentamento à impunidade exige uma atuação conjunta e célere de todo o sistema de Justiça. "É preciso atuar de forma coordenada e imparcial, respeitando a condição de vulnerabilidade da vítima e prevenindo sua revitimização", defende.

Para a especialista, uma resposta firme e proporcional do Estado tem um efeito pedagógico, capaz de desestimular potenciais agressores e de romper a cultura de que violência doméstica é um "assunto de casal". "Quando o agressor vê que o sistema de Justiça se importa, enxerga e vai reprimir, isso ajuda a romper o ciclo da violência. O Estado precisa deixar claro que não vai tolerar agressões contra mulheres", afirma.

A advogada criminalista Jessica Marques explica que a violência doméstica vai muito além do que está tipificado em lei, como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, além de dano moral ou patrimonial. Para ela, trata-se de um fenômeno social marcado pela "naturalização da desigualdade entre os sexos, no qual o agressor se impõe como superior diante da mulher, provocando diversos tipos de danos".

Os impactos psicológicos para as vítimas que permanecem por longos períodos em relacionamentos abusivos são profundos. É comum que essas mulheres sofram de ansiedade, medo, isolamento social e depressão. "Essas vítimas precisam de acompanhamento psicológico constante e especializado, para que possam reconstruir sua autoestima e retomar a confiança no convívio social", orienta Jéssica.

Para ela, o Brasil avançou em termos de legislação protetiva, com atualizações frequentes que buscam romper o ciclo da violência e punir com rigor agressores motivados por questões de gênero. No entanto, ainda há lacunas. "A punição, por si só, não basta. É fundamental investir em políticas públicas de prevenção, ampliar o acesso a informações sobre canais de acolhimento, divulgar as medidas previstas em lei e garantir que esses mecanismos funcionem na prática", pontua.

 

Ações 

Em nota, a Secretaria da Mulher do Distrito Federal (SMDF) manifestou profunda preocupação diante do caso de violência doméstica registrado recentemente dentro de um elevador, no DF. Para o órgão, o episódio "evidencia a gravidade da violência doméstica e familiar" e reforça que ela "pode se manifestar em qualquer espaço e situação", inclusive, em ambientes públicos ou de circulação restrita. A pasta afirmou que o combate a esse tipo de crime é "uma prioridade permanente".

A SMDF destacou que o Governo do Distrito Federal ampliou em 743% os recursos destinados às políticas públicas voltadas às mulheres nos últimos quatro anos. Esse reforço orçamentário possibilitou a criação e o fortalecimento de programas como o Aluguel Social para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica — que hoje atende 326 mulheres com auxílio de R$ 600 para moradia — e o Programa Acolher Eles e Elas, que oferece um salário mínimo e apoio psicossocial a 180 órfãos do feminicídio.

Entre os serviços já em funcionamento, a pasta citou a Casa da Mulher Brasileira — Unidade Ceilândia, aberta 24 horas por dia, todos os dias da semana, com atendimento multidisciplinar, alojamento provisório e apoio emergencial para vítimas em risco iminente. Outro equipamento citado é a Casa Abrigo, de endereço sigiloso, que oferece estadia de até 90 dias para mulheres e filhos, com atendimento psicológico, jurídico e de assistência social. Há ainda os Centros Especializados de Atendimento à Mulher (CEAMs), que funcionam de portas abertas, e os Espaços Acolher, que, além de atender vítimas, também realizam trabalho de reeducação com agressores encaminhados pela Justiça.

 

 

Machismo estrutural e misoginia: compreendendo e combatendo a violência contra a mulher

Amaury Santos de Andrade, advogado especialista na Lei Maria da Penha e professor de direito processual penal

O machismo estrutural e a misoginia representam sistemas de opressão profundamente enraizados em nossa sociedade, manifestando-se de formas sutis e explícitas que perpetuam desigualdades e violências contra as mulheres.

O machismo estrutural opera por meio de instituições, normas sociais e práticas cotidianas que naturalizam a superioridade masculina. Manifesta-se na diferença salarial entre homens e mulheres, na sobrecarga de trabalho doméstico feminino, na sub-representação política e na objetificação da mulher na mídia.

A misoginia, por sua vez, expressa o ódio ou aversão às mulheres, materializando-se em comentários depreciativos, assédio sexual, feminicídio e na desvalorização sistemática das contribuições femininas em diversos espaços.

Essas ideologias se perpetuam por meio da socialização desde a infância, quando meninas são ensinadas a serem "comportadas" enquanto meninos são incentivados à agressividade. O resultado é a normalização de comportamentos violentos e a culpabilização das vítimas.

Combater essas estruturas exige ações em múltiplas frentes: educação para igualdade de gênero desde cedo, políticas públicas efetivas de proteção às mulheres, campanhas de conscientização e o fortalecimento de redes de apoio.

É fundamental que homens de bem se engajem ativamente neste processo, questionando privilégios e comportamentos machistas para dar maior legitimidade nas ações de combate. A transformação cultural demanda o reconhecimento de que a violência contra a mulher não é um "problema feminino", mas uma questão de toda a sociedade que exige mudanças estruturais profundas para construirmos um futuro mais justo e igualitário.

 

postado em 09/08/2025 04:00 / atualizado em 09/08/2025 08:11
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